Não, não é só Mariana que faz de Brumadinho uma tragédia anunciada. A história é mais longa e conhecê-la faz de Brumadinho algo ainda mais assustador. Não se trata somente de descaso. É um projeto que começa a ser arquitetado nos anos 70 do século passado. Poucos sabem ou se lembram que foi nessa década, mais precisamente no ano de 1972 que Salvador Allende, em emocionante discurso na Assembleia Geral da ONU1, alertou o mundo para os perigos das transnacionais – estas grandes corporações que atuam aqui e ali, sem que a gente saiba, ao certo, de onde são ou a quem obedecem, só sabemos que são enormes em número de funcionários, em lucro, em investimentos. Allende anunciava a participação da ITT, empresa de telefonia norte-americana, no golpe que se anunciava no Chile.
Assim, a primeira vez que o mundo se deparou com uma denúncia explícita dos efeitos negativos de uma transnacional foi por seu viés político. Essa declaração foi o mote para que a ONU reconhecesse o problema e desaguou, em 1975, na criação do Centro sobre Corporações Transnacionais, no âmbito do Conselho Econômico e Social. O objetivo era elaborar um código de conduta para estas empresas, com foco em práticas de investimento igualitárias e responsáveis.
Os debates na Comissão encarregada do trabalho duraram anos. Em princípio, havia uma clara oposição de interesses entre os países então chamados desenvolvidos e os países em desenvolvimento. Os primeiros, onde estavam incorporadas estas empresas e de onde saía o dinheiro para os investimentos diretos que elas faziam em outros países, tinham interesse em regulamentar a conduta dos Estados que recebiam os investimentos. A lógica era a de proteger os investidores frente à ação dos Estados em que eles estavam investindo. Para os países em desenvolvimento, no entanto, a lógica era exatamente a inversa, pretendiam manter sua soberania garantindo que aplicariam suas próprias leis sempre que houvesse um conflito entre a transnacional que entra no país e seus regulamentos. A situação é relevante: para dar um exemplo, estamos falando dos casos em que as transnacionais, ao atuar em um país, violam políticas domésticas de proteção de trabalhadores.
Não havia regulamentação certa, àquela época, sobre como resolver esse problema. Era isso o que a Comissão buscava fazer. E foi sob essa tensão que foram aprovadas algumas regulamentações, como o Guia da OCDE para Multinacionais e a Declaração Tripartite da OIT para Empresas que previam princípios e regras que deveriam ser seguidos pelas empresas, mas de modo voluntário. As negociações para a aprovação do texto do Código de Conduta se iniciam em 1977. Agora, olhando para os anos finais daquela década, parecia ser o momento ideal para aprovar tal Código. As transnacionais tinham uma imagem muito ruim, seja pelas interferências políticas ou pelas econômicas e sociais nos países em que se instalavam e havia uma convergência de interesses entre os países em desenvolvimento e o bloco de países socialistas. Todavia, no início da década de 80 os ventos começam a mudar. O fluxo de investimentos diretos destas grandes empresas nos países em desenvolvimento cresceu exponencialmente e seus governos passaram a ver com bons olhos aquelas que antes, eram verdadeiros “monstros”.
É exatamente aqui que tanto Brumadinho quanto Mariana começam a ser anunciadas. É quando os governos de países em desenvolvimento abrem mão do poder de regulamentar essas transnacionais para garantir a entrada de investimentos para promover seus regimes de industrialização e inclusão na globalização econômica. Esse foi um movimento e não uma decisão coletiva. Decorreu da perda da noção de grupo, da ausência de solidariedade e cooperação. E talvez, do desconhecimento do tamanho que se tornariam aqueles “monstros”. Esse foi o ponto de inflexão que colaborou de maneira decisiva para chegarmos onde estamos.
Se os países em desenvolvimento, nomeadamente os do hemisfério sul, tivessem se mantido unidos, as chances de um resultado diferente teriam sido enormes. É claro que isso se dá em um contexto que não podemos esquecer: a emergência de regimes liberais em países desenvolvidos como Reino Unido (com Margaret Thatcher) e Estados Unidos (com Ronald Reagan) por certo tiveram seu papel eis que se utilizaram de seus diplomatas para ‘esfriar’ os debates do Código de Conduta, afirmando que o tempo para isso havia passado. E realmente, passados dezesseis anos do início das negociações, os trabalhos da Comissão foram encerrados.
Mas como isso se relaciona com o ocorrido em Brumadinho? O primeiro movimento internacional para tentar domesticar as grandes empresas se deu por força da influência política em um país por uma transnacional. Em Brumadinho, assim como em outros desastres que acontecem não só no Brasil, este mesmo componente se fez presente.
Por isso, depois de 55 milhões de m3 de rejeitos terem sido lançados sobre animais e pessoas por conta do rompimento da barragem da mineradora Samarco – controlada pela Vale – a história se repete com mais perdas humanas. Passados três anos do rompimento da barragem do Fundão, já sabemos que houve falta de fiscalização, já ficou claro que o poder público não tem condições, e ao que tudo indica, nem as quer ter para fiscalizar. O poder destas grandes empresas influencia os poderes do Estado, até que ele, mesmo em um grande país como o Brasil, não consiga fazer frente a elas – seja por falta de lei, ou por falta de fiscalização do cumprimento da lei.
Já em 2015 foi feita a relação entre o momento em que o Código de Mineração foi votado no Congresso nacional e o incremento nos valores que a Vale doou aos políticos. Aliás, para não restar dúvidas sobre as influências destas grandes empresas basta saber que em 2014 os três maiores financiadores de campanhas políticas foram o Grupo JBS, a Construtora Odebrecht e a Vale2. Alguém nunca ouviu falar das três?
É nesse sentido que Brumadinho foi anunciado há muito mais tempo. E é nesse sentido que as opções da década de 80 deságuam em Brumadinho. Após Mariana, há uma nova lei sendo discutida no estado de Minas Gerais, e os deputados que votaram contra uma de suas redações foram beneficiados direta ou indiretamente por doações da Vale. Mas a influência não se faz presente somente na elaboração de leis, ela continua em todo o processo: pode estar por trás dos motivos de não haver fiscalização; por trás da celeridade de concessão de licenças, atropelando-se as documentações exigidas; por trás dos processos para apuração de responsabilidades quando a violação finalmente acontece. Há vários momentos para que a influencia ocorra, por isso, mais do que nunca, é importante a atuação do Estado.
E esse fenômeno não é particular ao Brasil. Outros países na América Latina já enfrentaram e ainda enfrentam graves violações de direitos por conta das atividades de grandes corporações. Entre os anos de 1964 e 1992 o Equador lutou para conseguir responsabilizar a Chevron e sua subsidiária Texaco pelo rastro de violações a direitos humanos e direitos ambientais que sofria na região do Lago Agrio em consequência da indústria extrativista em seu território. Foi por isso que em conjunto com a África do Sul, pleiteou perante o Conselho de Direitos da ONU que fossem iniciadas tratativas para a elaboração de um tratado internacional que regulamentasse as condutas das transnacionais.
A primeira reunião do Grupo de Trabalho sobre Corporações Transnacionais e outras empresas ocorreu em 2015 e, em julho do ano passado, foi publicada a primeira minuta do texto do tratado. Esta é a excelente oportunidade que o Brasil tem para agregar outros países da América Latina em torno de um objetivo comum que é regulamentar as atividades destas corporações, criando mecanismos para que os Estados possam contornar seu poderio econômico. Não deve ser muito difícil encontrar esta convergência, afinal, os países da América Latina compartilham de muitos dos mesmos problemas – miséria, fome, ausência de proteção de direitos – , e entre eles, a incapacidade de fazer frente a estas corporações.
Sem isso, está difícil de assumir uma posição de destaque que nos faça, em 30 anos, nos orgulhar do ano de 2018, e mais difícil ainda de concretizar o que o então Secretário-Geral da ONU dizia na abertura da Conferencia sobre Empresas e Direitos Humanos para Instituições Nacionais de Direitos Humanos, em Seul, quando declarava que o desafio era fazer com que as empresas não fossem parte do problema – mas sim, fontes de soluções3. É essa a remodelação do continente que os latino-americanos e os brasileiros preocupados com Brumadinho precisam.
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1 ALLENDE, Salvador, Presidente da República do Chile, Assembleia Geral da ONU, 27a Sessão, 04.12.72, UN Doc A/PV.2096.
2 MELLO, Alessandra; PRATES, Maria Clara. Vale aumentou doações a politicos durante debate do Código de Mineração. 19.11.2015. Estado de Minas. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/11/19/interna_gerais,709569/vale-aumentou-doacoes-a-politicos-durante-debate-do-codigo-da-mineraca.shtml, acesso em 26.01.19.
3 Ban Ki-Moon, Mensagem em video na Conferência Regional Asia-Pacifíco sobre Empresas e Direitos Humanos para Instituições Nacionais de Direitos Humanos, Seul, 11-13.10.11. Disponível em https://www.un.org/sg/en/content/sg/statement/2011-10-11/secretary-generals-video-message-asia-pacific-regional-conference, acesso em 26.01.19.
Fonte: Jota
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