Até outubro do ano passado, quando foi editada a Medida Provisória do Contribuinte Legal, a única forma de o contribuinte conseguir descontos em multas e juros de tributos federais era em programas especiais de parcelamento, conhecidos como Refis. Quanto ao parcelamento, há um modelo ordinário de pagamento em até 60 vezes, mas sem desconto algum por parte da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.
A MP 899/2019 foi aprovada pelo Congresso no fim de março e em abril foi convertida na Lei 13.988, conhecida como lei da transação fiscal. Ela estabelece parâmetros permanentes para que os contribuintes possam obter descontos e parcelamentos para pagar tributos que entraram na categoria de Dívida Ativa da União. O estoque atual da Dívida Ativa da União e do FGTS é de R$ 2,4 trilhões, de acordo com o levantamento mais recente da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). O valor está dentro das expectativas, de acordo com própria PGFN.
Os descontos são de até 50% do valor total, desde que não altere o montante principal, ou seja, o tributo em si. Já o prazo de quitação é de até 84 meses. Há regras diferentes para sociedades cooperativas e Santas Casas de Misericórdia: com redução de até 70% do valor total e prazo de até 145 meses. Há a possibilidade de desconto total de multas, juros e encargos legais, desde que a soma não atinja os limites estabelecidos, de 50% e 70%, em relação ao montante.
“A Lei 13.988 trouxe uma vantagem para o contribuinte negociar suas dívidas direto com o ente público, mas os prazos que são concedidos são pequenos. Então dificilmente você vai ter um empresário fazendo isso, ele vai aguardar um novo Refis”, diz Luis Alexandre Oliveira Castelo, sócio do Lopes & Castelo Advogados.
Também há queixas quanto aos descontos propostos. “Na minha visão, como os descontos da transação não são atraentes, é provável que nós tenhamos novos projetos de lei de Refis, justamente para criar benefícios maiores para que mais gente venham a aderir ao programa para o governo arrecadar mais dinheiro”, avalia Leonardo Andrade, sócio da área tributária do escritório Andrade Maia Advogados.
Andrade também crítica o fato de a lei não tratar de precatórios: “Outra crítica que faço é que a lei não permite que o contribuinte devedor utilize seu precatório como uma moeda de troca na transação com o governo”.
Por outro lado, há um consenso quanto à importância da nova lei para estabelecer um diálogo maior entre contribuintes e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. “Em 20 anos de carreira, posso contar nos dedos das mãos as vezes que consegui conversar com um procurador. Não conseguíamos achar um canal de comunicação com a Procuradoria”, lembra Tatiana Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados.
“A Procuradoria, há mais de uma década, se predispôs a evitar litígios desnecessários que custam dinheiro. E tem se dedicado a essas ferramentas que colocam Fisco e contribuinte lado a lado em uma mesa redonda, sem arestas”, diz João Grognet, coordenador-geral de Estratégia de Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. “Não quero que fique a imagem que estamos em uma mesa onde a discussão tenha um balanço sem compasso”.
Uma das principais novidades trazidas pela lei da transação fiscal é que há uma distinção dos contribuintes na hora de negociar o pagamento. A dívida a ser negociada é dividida em quatro categorias: A, B, C e D. “Só posso dar desconto para o crédito irrecuperável. A regra geral, é que a recuperabilidade é medida a partir da capacidade de pagamento do devedor”, explica João Grognet. “A capacidade de pagamento é estimada a partir de uma equação matemática em cima dos signos presuntivos de atividade econômica, financeiros e patrimoniais”.
Essas regras quanto ao cálculo da capacidade de pagamento estão presentes nos artigos 19 e 20 da portaria 9917/2020 da PGFN. O artigo 19 diz: “a situação econômica dos devedores inscritos em dívida ativa da União será mensurada a partir da verificação das informações cadastrais, patrimoniais ou econômico-fiscais prestadas pelo devedor ou por terceiros à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou aos demais órgãos da Administração Pública”.
Para Edson Vismona, presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), é preciso uma alta transparência na definição dessa classificação. “Uma sugestão que poderá conferir maior segurança jurídica é a criação de um canal para que se possa reportar possíveis equívocos no enquadramento”, diz.
Dívidas de até R$ 15 milhões só podem ser parceladas por adesão. Nesse caso, o contribuinte precisa aceitar todas as condições impostas no edital que propõe o parcelamento. Os editais publicados até o momento podem ser vistos aqui. Se o valor da dívida for maior do que R$ 15 milhões, é possível realizar a transação individual, com negociação direta com a PGFN. Para saber a situação da dívida de cada contribuinte, é preciso acessar o site da Receita Federal, mais especificamente o Centro de Atendimento ao Contribuinte, o e-CAC.
“O limite que estabeleceram, de R$ 15 milhões, é bastante alto para que os contribuintes possam fazer os pedidos de recuperação individual, que são mais interessantes, com as bases de pagamento e descontos sendo negociadas de forma mais personalizada”, avalia Fernanda Lains, sócia do Bueno e Castro. “Quando a gente fala em R$ 15 milhões é um valor baixo para contribuintes do Sul, Sudeste, que têm uma maior geração de receita. Quando vamos para as regiões Norte e Nordeste, fica difícil de alcançar esse limite”.
Há uma ressalva que gera críticas: o fato de o contribuinte que optar pela transação por adesão ter que abrir mão do litígio administrativo ou judicial relacionado ao tributo negociado. “A Lei dificulta a possibilidade de manutenção de medida judicial para a discussão de questão processual nos casos em que a tese de mérito seja objeto de proposta de transação, diz Edson Vismona, do ETCO.
Uma vez que a transação individual é estabelecida, a negociação é feita entre o contribuinte e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. “Uma transação individual exige inúmeras reuniões e discussões em torno do texto de um termo de transação. Pode envolver inspeção local no estabelecimento do devedor. Não é uma coisa para se acontecer no atacado, é no varejo”, explica João Grognet, da PGFN. “Os procuradores estão abertos, querendo resolver. Anos atrás eu não via essa disponibilidade na Fazenda”, ressalta Maurício Maioli, sócio head na área tributária do Feijó Lopes Advogados.
Até julho, foram transacionados 204 mil débitos, de 55 mil contribuintes, no valor total de R$ 18,8 bilhões, segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Em junho, o Ministério da Economia e a PGFN publicaram a Portaria 14.402, que estabelece condições para transação excepcional por causa dos efeitos econômicos causados pelo coronavírus. O período de adesão termina no dia 29 de dezembro e a transação pode ser feita no portal Regularize.
O primeiro programa de parcelamentos especiais foi criado no ano 2000, com a instituição do Programa de Recuperação Fiscal (Refis). Desde então, foram concebidos cerca de 30 programas de parcelamentos especiais, de acordo com levantamento da Receita Federal. Houve casos em que os contribuintes tinham acesso a uma redução de até 100% de juros e multas.
Diante desse histórico, grande parte daqueles que possuem dívidas tributárias com a União preferem esperar um novo programa de parcelamento e, por isso, a procura pela transação fiscal tem sido baixa. “Dos meus clientes, poucos aderiram porque estão na expectativa de obter descontos maiores com um novo programa de parcelamento”, diz Leonardo Andrade, sócio da área tributária do escritório Andrade Maia. “Muitos clientes nos procuraram para fazer uma simulação, mas ninguém efetivou”, conta Luis Alexandre Oliveira Castelo, sócio do Lopes & Castelo Advogados.
“Não vejo no curto prazo, depois dessa lei de transação, nenhuma possibilidade de Refis. Não há clima político para um novo Refis”, avalia Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco). Em maio, o deputado federal Ricardo Guidi (PSD-SC) apresentou o Projeto de Lei 2735/2020, que propõe um novo programa de parcelamento em decorrência do estado de calamidade pública motivado pela pandemia.
A proposta prevê descontos de até 90% das multas de mora e de ofício, dos juros de mora e do encargo legal, mas não há perspectiva quanto ao avanço do texto no Congresso.
Também há quem considere os prazos permitidos pela lei da transação muito curtos. “Na lei de transação, o máximo de prazo que a Fazenda pode conceder é de 84 meses, e se for empresa do Simples até 100 meses. Os Refis antigos tinham prazos de 15 e até 20 anos”, destaca Maurício Maioli, do Feijó Lopes Advogados.
Além disso, a lei resolve uma parte das dívidas tributárias das empresas, especificamente aquelas com a PGFN. Por enquanto, negociações das dívidas com a Receita carecem de regulamentação.
“Se eu sou um empresário, fico pensando ‘tenho débito na Procuradoria, na Receita Federal e de ICMS’. Essa lei me concede o parcelamento do federal na parte da Procuradoria da Fazenda, eu ainda vou ficar inadimplente tanto para os débitos que tenho na Receita Federal, como para os débitos que tenho com o estado”, relata Castelo, do Lopes & Castelo. “Que benefício o empresário teria? Nenhum. Porque o que é preciso para operar no mercado é a certidão de regularidade fiscal, a CND, e com essa transação não é possível obtê-la. Não há um atrativo que estimule a adesão à transação tributária hoje”.
Por outro lado, há advogados que entendem que a lei vai exigir uma mudança de pensamento dos contribuintes. “A lei tem que evoluir junto com os bons contribuintes, que vão amadurecer com essas novas regras do jogo que a União está trazendo para a negociação”, avalia Tatiana Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados. “Vai ter que haver uma mudança de cultura, principalmente pelos contribuintes que são mal pagadores”, afirma Fernanda Lains, sócia do Bueno e Castro.
“As pessoas estavam muito acostumadas com aquele velho modelo do Refis. E a transação não é isso, envolve um outro tipo de diálogo com a Procuradoria. Junto com o contribuinte vai ser pensado quase que um plano de recuperação judicial, mas pensando os créditos tributários”, diz. “É um diálogo em novas bases, é uma nova cultura”.
Outra novidade da Lei 13.988/2019 está no artigo 16, que diz que o Ministério da Economia poderá propor aos sujeitos passivos transação de litígios aduaneiros ou tributários decorrentes de relevante e disseminada controvérsia jurídica.
“Estamos esperando a regulamentação da transação que envolve o contencioso de controvérsias. Essa vai ser a grande novidade. Aqui vai envolver as empresas que estão discutindo teses”, explica Leonardo Varella Gianetti, advogado do Rolim, Viotti e Leite Campos.
As regras para desconto e negociação serão as mesmas, com limites de descontos e classificação de cada dívida. Nesse caso, a PGFN vai classificar como créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação aqueles nos quais há chances maiores de o contribuinte ter a tese aceita pelos julgadores.
“O que estamos antevendo é que se o contribuinte tem uma ação tramitando e vai ser julgada pelo STF em recurso de repercussão geral, por que ele vai abrir mão daquilo? Vai ser uma decisão de teoria dos jogos e caso a caso”, diz Maurício Maioli, do Feijó Lopes Advogados. Gianetti faz uma ressalva: “O problema é saber o tempo do processo e se vai ganhar. Um critério objetivo que temos é a jurisprudência. Demora muito tempo e é muito temeroso dizer que a tese é vencedora”.
A lei de transação fiscal não permite descontos sobre multas de natureza penal. O presidente executivo do ETCO, Edson Vismona, entende que a lei deveria ter deixado de forma mais clara o que seriam “multas de natureza penal”.
“A expressão ‘de natureza penal’ acarreta dúvidas quanto aos limites da vedação imposta pelo dispositivo”, diz Vismona. “Seria conveniente esclarecer que apenas as multas impostas no âmbito de processo penal, conforme a Lei nº 8.137, não poderão ser objeto de transação, inexistindo restrição com relação às multas qualificadas, impostas por autoridades tributárias”.
O tributarista Leonardo Andrade também é crítico a este ponto da lei. “Esse tipo de medida ignora a prática de que tem muitos planejamentos tributários que tiveram a aplicação indevida da multa. Na prática, as multas foram aplicadas para qualquer caso”, argumenta. “Tenho vários clientes que tiveram aplicação de multa qualificada em casos que não havia crime e eles não vão ter benefício nenhum porque se entendeu na lei que não pode haver desconto para multas qualificadas”, diz. “A transação teve um escopo muito mais reduzido do que deveria”.
Fonte: Jota
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