Conheça os principais pontos do projeto que pune a inadimplência substancial e reiterada de tributos
O Ministério da Economia apresentou à Câmara dos Deputados, em março, o Projeto de Lei no1.646/19, cujo objetivo principal é combater o devedor contumaz e fortalecer a cobrança da dívida ativa no âmbito da administração tributária federal. Diversos pontos do texto merecem atenção, como, por exemplo, a parte que trata dos procedimentos extrajudiciais aplicáveis ao devedor contumaz, definido como “o contribuinte cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência substancial e reiterada de tributos”.
Da forma como foi colocada no projeto, a caracterização da “inadimplência substancial e reiterada de tributos” pode dar margem a equívoco de interpretação. Ela foi definida no §1o do art. 2o como a existência de débitos em nome do devedor ou de pessoas físicas ou jurídicas a ele relacionadas, inscritos ou não em dívida ativa e em valor igual ou superior a R$ 15 milhões, em situação irregular por período igual ou superior a um ano.
O problema é que, dessa forma, o texto não identifica a natureza da relação jurídica entre o devedor e as pessoas físicas e jurídicas que possa justificar o cômputo das dívidas particulares destas para caracterizar a inadimplência reiterada daquele. Ao avaliar a Constituição Federal e o sistema tributário nacional, a única interpretação compatível é a que restringe a possibilidade de considerar a dívida própria de terceiros no cômputo da dívida do devedor à efetiva existência de hipótese legal de solidariedade ou responsabilidade tributária desses terceiros.
O Código Tributário Nacional define taxativamente essas hipóteses em que outras pessoas, que não o contribuinte, podem ser responsabilizadas pela dívida tributária, precisamente nos artigos 124 e 128 a 135. É preciso comprovar que haja participação no fato gerador, sucessão, vínculo com o fato gerador, responsabilidade de gestores por atos praticados com infração à lei ou aos estatutos ou com excesso de poderes, entre outras hipóteses expressamente previstas.
Isso significa que, por reservar à lei complementar (no caso, o Código Tributário Nacional) a competência para dispor sobre obrigação tributária (art. 146), qualquer outra interpretação do texto normativo sugerido no PL violará a autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus sócios, acionistas ou empresas coligadas e será inconstitucional. Em suma: uma lei ordinária não pode instituir hipótese de responsabilidade legal presumida.
O Projeto de Lei 1.646/19 também permite que os órgãos da administração tributária da União possam instaurar procedimento administrativo contra o devedor contumaz, impondo restrições administrativas que consistem no cancelamento de cadastro fiscal (CNPJ ou CPF) e impedimento de fruição de quaisquer benefícios fiscais pelo prazo de dez anos.
Outro aspecto que merece atenção no PL é a necessidade de que a Fazenda apresente indícios da prática de ato ilícito (doloso, fraudulento ou simulado) para que as restrições administrativas sejam aplicadas, não podendo apenas apontar o contribuinte como devedor contumaz. Isso evidencia a tônica do PL, que tem como principal objetivo alcançar contribuintes que praticam atos ilícitos, não aqueles que apenas tenham tributos em aberto.
A instauração do procedimento exige somente a presença de indícios. Porém, para a efetiva aplicação das restrições é preciso prova efetiva da prática dos atos ilícitos descritos na norma. Há quem avalie constitucionalidade duvidosa na aplicação de sanções administrativas de tamanha gravidade, que podem impedir a pessoa física ou jurídica de exercer sua atividade profissional ou social, sem o prévio controle pelo Poder Judiciário.
A medida, que envolve uma limitação drástica de direitos, de fato parece desproporcional aos fins visados e, de certa forma, viola a garantia do devido processo legal. Em observância satisfatória da ampla defesa e do contraditório, não há como se cogitar um procedimento em que o julgador não é investido de poderes jurisdicionais, não sendo imparcial justamente porque é parte interessada.
Além disso, se a ideia é criar mecanismos que tornem mais efetivo o recebimento do crédito tributário, não é com o cancelamento do CPF e do CNPJ de pessoas físicas e jurídicas que esse objetivo será alcançado. Ao contrário: a criação de restrições ao exercício da atividade social e econômica pode acabar impedindo a produção de riquezas e, consequentemente, o pagamento de tributos.
Para evitar que o pretenso exercício de atividades econômicas não se preste a encobrir a prática de atos ilícitos, a Fazenda Pública já conta com mecanismos eficazes no ordenamento jurídico atual, como a medida cautelar fiscal, que o próprio PL, em outros dispositivos, busca robustecer. Por isso, seria melhor se o procedimento para caracterizar restrições administrativas constituísse mecanismo preparatório de coleta de evidências a justificar o ajuizamento futuro de medida judicial em face do devedor, ainda que destinada ao cancelamento de CPF ou CNPJ, caso comprovado em juízo o desvio de finalidade no exercício de atividade econômica, utilizada como subterfúgio para a prática de ilícitos tributários.
No tocante à quitação de débitos inscritos em dívida ativa classificados pela autoridade fazendária como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, o PL permite que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ofereça condições diferenciadas de cobrança. Não havendo indícios de esvaziamento patrimonial, poderão ser concedidos descontos de até 50% do valor consolidado da dívida – inclusive aplicados sobre multa e juros, para pagamento à vista ou em até 60 parcelas. Os descontos não podem ser concedidos em caso de multas que, em autos de infração, visem punir sonegação fiscal, fraude e conluio, na forma prevista na Lei no 4.502/64; nos créditos relativos ao Simples Nacional ou ao FGTS; e nos créditos inscritos em dívida ativa há menos de dez anos.
Nesse quadro, é tarefa da PGFN regulamentar a fixação de descontos, inclusive com base na recuperabilidade do crédito e no prazo para sua quitação. Por ser destinado efetivamente ao recebimento do crédito tributário, esse ponto da proposta é considerado positivo, por contemplar a possibilidade de celebração de negócio jurídico extrajudicial entre Fazenda Pública e contribuinte, no bojo dos modernos meios alternativos de resolução de controvérsias.
Porém, se o objetivo é compor a lide tributária, e se a autoridade fazendária já tem liberdade para classificar o crédito como irrecuperável ou de difícil recuperação, bem como para fixar percentuais de desconto com base no grau de sua recuperabilidade e no tempo para recebimento dos valores, o prazo de tempo mínimo pelo qual o débito deve estar inscrito em dívida ativa (dez anos) pode inviabilizar a efetiva satisfação do crédito, ainda que parcialmente.
Esses são alguns aspectos que devem permear o debate democrático no processo legislativo, para que, ao fim, a cobrança e o recebimento da dívida tributária atendam aos anseios da sociedade, sem violar direitos fundamentais do contribuinte.
Fonte: Valor
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