O contribuinte inidôneo e a análise da boa-fé

Há mais de 40 anos contribuintes do ICMS (SP) sofrem lavraturas de Autos de Infração e Imposição de Multa (AIIM), em face do perfazimento de negócios jurídicos com terceiros considerados inidôneos. Isso porque a documentação fiscal emitida e recebida pelo contribuinte irregular é considerada inidônea, o que afeta o outro, que pode ter agido com lisura.

Até hoje contribuintes autuados e Fisco estadual deixam de atentar para importantes questões fático-jurídicas, como a atinente à valoração das provas.

A Súmula 509, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmou a diretriz de que “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.

Cobra relevo as provas de pagamento da mercadoria adquirida eis que demonstram a veracidade da operação mercantil

Cobra relevo as provas de pagamento da mercadoria adquirida eis que demonstram, com outros elementos, a veracidade da operação mercantil e a legitimidade do direito ao crédito do imposto estadual. Não raro, têm sido juntadas aos AIIM provas de pagamentos referentes apenas à parte das operações nele contidas.

Para uns, ou se reconhece a boa-fé do contribuinte como um todo (relativamente a todas as operações do AIIM), ou se atesta a subsistência da acusação fiscal integralmente. Ou seja, o AIIM lavrado é integralmente (i) mantido ou (ii) cancelado.

Todavia, por várias razões a boa-fé do contribuinte deve ser avaliada considerando operação específica.

Revela fragilidade a assertiva utilizada no âmbito administrativo de que, não demonstrada a veracidade da “maioria” das operações do AIIM, imperioso o não reconhecimento da boa-fé para todas elas.

“Maioria” das operações consiste em, ao menos, 51% das notas fiscais que a descrevem e figuram no processo? E se é comprovado o pagamento de maioria substancial das operações do AIIM (90% das NF), mas que sequer representa 10% do valor do débito fiscal? Para precisar o valor das operações, não é oportuno proceder a cálculo que considere circunstâncias supervenientes como a devolução parcial de mercadorias? E os valores das notas fiscais mais antigas, não devem ser atualizados?

Não há critério seguro para determinar o que seja “maioria” das operações.

Deixar de relacionar a boa-fé a cada operação é olvidar a possibilidade de que, contribuintes inseridos em esquema de fraude estruturado, possam também ter praticado negócios legítimos (efetivamente realizados) e que conferem direito ao crédito do ICMS. Há que separar o joio do trigo.

O exame da boa-fé com base na operação decorre da própria Lei Estadual nº 6.374/89, que atrela o valor da multa aplicada a determinado negócio jurídico.

A seguinte situação hipotética também demonstra o desacerto da tese que dissocia a boa-fé da operação individualmente considerada.

Ex. nº 1: O fiscal lavra um único AIIM, cuja acusação fiscal (crédito indevido do ICMS) se refere a operações representadas em 100 notas fiscais (NF) de saída de mercadorias. O contribuinte apresenta provas de pagamento de 70 notas fiscais.

Para quem adota a tese questionada, o AIIM será cancelado, porquanto teria sido demonstrada a veracidade da “maioria” (70%) das operações de compra e venda.

Ex. nº 2: O trabalho fiscal segrega as mesmas operações do Ex. nº 1 (descritas em 100 NF) nos AIIM “A” e “B”.

O AIIM “A” se refere a 50 operações, todas com provas de pagamento. Essa circunstância, somada a outros elementos probatórios, conduz à improcedência do lançamento.

Já a acusação fiscal do AIIM “B” diz respeito às outras 50 operações, dentre as quais, recorde-se, apenas 20 têm provas de pagamento.

Na tese posta em cheque o AIIM “B’ será mantido, porque não há provas de pagamento da maioria (30) das operações.

Assim, no exemplo nº 2 o AIIM “A” será cancelado (comprovação de pagamento de todas as operações) e o AIIM “B” será mantido (ausência de comprovação de pagamento da maioria das operações). Será então reconhecida a boa-fé do contribuinte em metade de todas as operações mercantis por ele realizadas (operações divididas nos AIIM “A” e “B”).

Curiosamente, enquanto no Ex. nº 1 é reconhecida a boa-fé do contribuinte no tocante a todas as 100 operações, no Ex. nº 2 a boa-fé só é aceita para metade dessas mesmas operações (só as do AIIM “A”). É o que se colhe quando não se considera a operação individualmente.

Ao prevalecer o (equivocado) entendimento, decisões em autuações fiscais estarão vulneráveis ao trabalho fiscal, que determinará o (s) período (s) abarcado (s) pelo (s) AIIM. Haverá insegurança jurídica na relação Fisco-contribuinte, o que não se pode admitir.

Em contrapartida, ao atrelar o reconhecimento da boa-fé do contribuinte a cada operação, seja qual for o expediente adotado pelo fiscal – lavratura de um único AIIM (ex. nº 1) ou desmembramento em dois ou mais AIIM (ex. nº 2) -, a conclusão será sempre mesma: o reconhecimento da boa-fé quanto às 70 operações realizadas. Tal compreensão garante a segurança jurídica que deve permear as relações jurídicas tributárias, até porque decorre da verdade material.

Eduardo Soares de Melo é professor do IBET, juiz da Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT), advogado do escritório Honda, Teixeira, Araujo, Rocha Advogados

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Por Eduardo Soares de Melo

Fonte : Valor

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