Por Gisele Pereira
A “invenção” da legislação brasileira vigente sobre as vendas de produtos importados na modalidade “por encomenda” (com comprador predeterminado) transforma uma operação que deveria ser simples (e lógica) em uma espécie de ornitorrinco jurídico. Um bichinho estranho: mamífero subaquático e ovíparo, com membranas nos pés, cauda similar à de um castor, focinho que lembra um pato e com o corpo coberto de pelos.
O que deveria ser simplesmente uma venda de produto importado, foi transformada em uma “esquisitice jurídica” que, na prática, transforma compulsoriamente o comprador/encomendante em importador. Uma espécie de mutante.
É exigido que o comprador/encomendante seja previamente habilitado no Radar – exatamente como se um importador fosse – junto à Receita Federal para adquirir mercadoria importada sempre que tiver feito um contratado prévio pelo qual manifesta sua intenção de comprar a mercadoria após a sua nacionalização pelo importador.
Este contrato poderia ser verbal ou mesmo por meio de correio eletrônico, como é a prática no mercado doméstico. Contudo, a autoridade aduaneira “exige” um contrato e que ele seja levado ao conhecimento dela previamente.
Feito isso, o importador, que é efetivamente o comprador da mercadoria do exportador e destinatário final no sentido jurídico (não no sentido econômico), quando registra uma declaração de importação de produtos com comprador predeterminado tem a obrigação de mencionar no campo destinado ao “adquirente” (operação por conta e ordem), o CNPJ do “encomendante”. Ou seja: sequer o sistema (SISCOMEX) prevê o campo para informar o encomendante. Devendo o importador informar o CNPJ do comprador predeterminado em um campo destinado a outra informação (do adquirente) e mencionar no campo das informações complementares (campo livre) tratar-se de uma operação por encomenda. Tipo um “puxadinho”!
Não bastasse, o comprador predeterminado/encomendante pode ser intimado a comprovar sua capacidade econômica/financeira para realizar a operação de “importação”, sendo considerado solidário da obrigação aduaneira/tributária. Destaca-se que ele não está importando e sim comprando no mercado interno mercadoria importada. Assim sendo, o valor da operação da importação, por certo, será sempre inferior ao valor de sua compra uma vez que o vendedor (importador) irá colocar sobre seu custo de importação, todas as despesas, tributos e margem de lucro para compor o preço de venda.
Então, qual o valor que o comprador predeterminado/encomendante deveria considerar para demonstrar sua capacidade econômica financeira? O da importação, que certamente ele sequer conheça ou do valor de sua compra efetivamente realizada?
Outros questionamentos: E se o vendedor (importador) lhe oferecer crédito assumindo para si o risco de uma possível inadimplência do comprador/encomendante quanto ao pagamento das mercadorias? E se ele (comprador/encomendante) desistir da compra? E se o vendedor desistir de vender? E se ele (comprador/encomendante) estiver com problemas financeiros, portanto sem crédito? E se houver um distrato do contrato de compra e venda? São muitas as possibilidades e fatos que podem ocorrer após a celebração do contrato de compra e venda de mercadoria importada por encomenda. Esta solução deveria ser no âmbito dos particulares, sem qualquer interferência ou participação do fisco.
Ainda, para demonstrar a criatividade do legislador pátrio, podemos falar das regras de preço de transferência (artigos 18 a 24 da Lei nº 9.430/1996) aplicáveis ao comprador/encomendante da mesma forma que se aplica ao importador. Em outras palavras, se o exportador estrangeiro estiver domiciliado em país ou dependência com tributação favorecida e/ou for vinculado ao importador ou ao comprador/encomendante, as regras de “preço de transferência” para a apuração do imposto sobre a renda deverão ser observadas por quem? Importador ou o comprador predeterminado (encomendante)?
Para piorar o que já é suficientemente ruim, o comprador predeterminado (comprador/encomendante) deve recolher o IPI na saída de suas mercadorias para o seu cliente.
Desta forma o importador (real), nacionaliza a mercadoria e recolhe o IPI na entrada e, posteriormente, se credita desse. Logo em seguida ele compõe seu preço de venda, incluindo o custo de importação, seus custos operacionais, tributos incidentes sobre a venda e margem de lucro. Sobre tudo isso incide o IPI. Na sequência, o comprador recebe a mercadoria, faz de novo crédito do IPI, forma seu preço de custo, aplica suas despesas, tributos incidentes sobre a sua venda e o lucro, novamente destaca (e paga) o IPI.
Neste especial, o comprador novamente sofre uma mutação jurídica e vira contribuinte do IPI que na prática se transforma em uma espécie de “ICMS Federal”.
Ousando discordar desta sistemática. Comprador é comprador. Não é razoável transformar um comprador em importador somente pelo fato de haver um contrato de compra predeterminado. O fato de haver um contrato prévio, exigido pela aduana para a realização da operação de importação por encomenda, ele não se presta para descaracterizar a natureza de compra e venda da operação subsequente à importação.
O entendimento quanto à natureza jurídica de uma compra de mercadoria importada quando há um contrato prévio (encomenda) não pode ser diferente de uma encomenda de mercadoria em uma indústria nacional, por exemplo. Quem se equipara ao industrial (IPI) é o importador. Condição que tem o objetivo justo de proteger a indústria nacional. Contudo, a partir daí, resta desarrazoado equiparar o comprador, seja ele predeterminado ou não como se importador fosse, sob pena de afronta ao artigo 110 do Código Tributário Nacional de que “ a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal (…)”.
Este malabarismo que a legislação brasileira impõe às importações com comprador predeterminado ou por encomenda um alteração na lógica do negócio jurídico/comercial pretendido uma vez que altera a definição de compra de mercadoria quando permite que o fisco desnature do negócio jurídico realizado entre comprador e vendedor, resultando em severo impacto na liberdade do exercício da atividade econômica (artigo 170, § único da CF) e autonomia da vontade, fonte do direito obrigacional, livre da ingerência do Estado, desde que estejam presentes os requisitos da validade contratual (artigo 104 do Código Civil).
É ou não um “bichinho” esquisito?
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