É constitucional a incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade?
É constitucional a incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o salário- maternidade? O STF decidirá o tema no recurso extraordinário no 576.967/PR, sob relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso. O julgamento foi iniciado em novembro de 2019 e sua continuidade estava em pauta para 5 de fevereiro 2020. Na última sexta-feira (31/1), Toffoli mudou a data para o dia 2 de abril. Do ponto de vista das regras jurídicas, a resposta depende da de nição da natureza do salário- maternidade, se é salarial ou indenizatória. Da perspectiva dos princípios, o que está em jogo é o valor do cuidado.
Cuidado é a palavra usada por algumas vertentes do feminismo para se referir à atividades indispensáveis para manutenção da vida e da saúde, presente especialmente nos momentos de vulnerabilidade como a infância, a velhice e os adoecimentos. Essa atividade é exercida essencialmente por mulheres e tem baixo reconhecimento político e jurídico. No art. 203 a Constituição se refere à proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice. Não há, de forma explícita, proteção à cuidadora, porém, o princípio da igualdade impõe ao Estado que trate suas cidadãs e cidadãos com igual consideração e respeito.
É nesse cenário que o efeito extra fiscal da tributação ganha relevância para uma mudança do comportamento socioeconômico em relação à mulher mãe e empregada. Como se sabe, para além do objetivo arrecadatório ( scal) da incidência tributária, tem-se que a forma como se institui e cobra um tributo estimula ou desestimula um comportamento por parte de quem suporta a exação.
Não é necessário muito esforço para se concluir que uma tributação que incida exclusivamente sobre a mão de obra desempenhada por mulheres que se tornam mães serve para criar um entrave à contratação delas e para reforçar o estigma de que a maternidade e os cuidados que ela envolve não são uma questão de ordem pública, ao contrário, são um ônus a ser arcado apenas pelas mulheres. Em última instância, pela legislação tributária atual, o Estado pune a mulher pela gravidez, uma vez que faz recair sobre ela, tão somente em função do seu gênero, um tributo a ser pago pelo seu empregador.
No regime atual, os valores referentes ao salário-maternidade são assegurados pelo INSS. Os empregadores pagam diretamente às trabalhadoras no momento da licença, mas há compensação tributária posterior. Como consequência da Convenção OIT no 103, rati cada pelo Brasil em 18 de junho de 1965, e normas posteriores, quem emprega mulheres não pode ser responsável pelo custo das prestações a elas devidas.
Assim, o caminho analítico é simples: se a contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade representar um ônus extra para o empregador, isso impactará em sua decisão sobre quem será contratado, uma mulher ou um homem. Um trabalhador produz, uma trabalhadora produz e reproduz. Ou seja, há duas maneiras de lidar com essa diferença: ou a coletividade arca com a reprodução social – e com os ônus do cuidado a ser dispensado ao recém-nascido – ou as mulheres em idade reprodutiva não terão o mesmo acesso ao trabalho remunerado que seus colegas homens.
O relator, Ministro Luís Roberto Barroso, votou pela inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade. Disse o Ministro que a incidência da contribuição é discriminatória e que “A preocupação fiscal tem de ceder a uma demanda universal de justiça com as mulheres”. As Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia seguiram o relator, felizmente, assim como o Ministro Edson Fachin.
Uma das manifestações do Ministro Alexandre de Moraes elucida o que nos interessa debater: “A discussão é nanceira, tributária” (…) “A preocupação aqui não é com a mulher, não é com a igualdade de gênero, a preocupação aqui é em não pagar tributo”. Conforme o Comitê de Dados Abertos do INSS, 609.689 pessoas receberam auxílio salário-maternidade em 2019, 609.373 mulheres e 316 homens (casos de adoção).
O argumento de que o debate sobre a igualdade de gênero esconde a intenção das empresas de pagar menos tributo é frágil, não apenas porque não se trata de isentar as empresas de um ônus que elas já não têm, mas porque traz implícito o status de inferioridade dos direitos das mulheres. Enquanto o Ministro Barroso aponta a tensão entre arrecadação e igualdade de gênero, o Ministro Alexandre não compreende que a tributação e a fiscalidade impactam de forma diferentes homens e mulheres.
Os que discordam da inconstitucionalidade a rmam que discutir a extensão da incidência do tributo não se relaciona com eventual impacto nas mulheres ainda que a base de cálculo em questão seja uma das peças fundamentais da política pública de fomento ao mercado de trabalho da mulher.
Em um sistema constitucional que preza pela igualdade, a arrecadação fiscal, a tributação e o desenho infraconstitucional da seguridade social não podem dispensar avaliações sobre os impactos que causam às minorias. Sem tanta controvérsia, a Lei no 11.770/08, por exemplo, de niu incentivo scal às empresas que aderissem à prorrogação da licença-maternidade de 120 para 180 dias, em nome da proteção às mulheres e à infância.
A separação entre o sistema tributário e a igualdade de gênero feita pelo Ministro Alexandre ignora a divisão sexual do trabalho, ou seja, desconsidera que existe outra espécie de trabalho que também tem consequências tributárias e scais, o trabalho de cuidar. Não incorpora em sua investigação sobre a natureza jurídica da licença-maternidade que as mulheres após o parto estão realizando um trabalho que não é apenas delas e sim da coletividade. E que a delegação da tarefa de cuidado a um gênero especí co foi um processo secular que naturalizou uma divisão de atividades que é, na realidade, criada e reforçada pela cultura.
Há décadas as mulheres denunciam que a aplicação do direito como um sistema neutro reforça sua condição de subordinação.
Não há direito tributário puro, todo o sistema jurídico precisa ser lido a partir da diferença de gênero, é isso que está inscrito no art. 5, I da CF/1988 ao dizer que homens e mulheres são iguais.
Escamotear a incontornável diferença que existe nas possibilidade de um homem e de uma mulher conciliarem a vida laboral com a reprodução é efeito da diferenciação entre as esferas pública e privada. Essa falsa dicotomia torna o trabalho do cuidado atividade sem relevância pública su ciente para concorrer com objetivos arrecadatórios.
Além do Ministro Alexandre de Moraes, os Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes também pensam que o salário-maternidade tem natureza remuneratória uma vez que só é devido a mulheres que possuam um contrato de trabalho. Poderíamos ler essa observação por lentes mais justas que revelariam que todas as mulheres que pariram, sob contrato de trabalho ou não, são trabalhadoras do cuidado e deveriam ser recompensadas por isso.
A continuidade ou interrupção do contrato de trabalho é um caminho que revela apenas parte do problema. Sob a lente dos direitos fundamentais, é indispensável considerar o dever público de indenizar a mulher pelo que se interrompe, se atrasa e se perde em sua vida pro ssional com a gestação e nascimento. O objetivo arrecadatório do Estado não pode justi car a discriminação indireta contra mulheres empregadas.
A regra sobre o que é salário e o que é indenização só será conhecida se for construída a partir dos princípios constitucionais e não à margem deles. A análise da constitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre o salário- maternidade é, em verdade, um grande tema de direito constitucional, boa oportunidade para que o STF demonstre que cuidado tem valor e que tributação e fiscalidade também são uma questão de igualdade de gênero.
***A redação principal do texto foi feita por Janaína Penalva (UnB), com revisão de Carolina Gonçalves (UFG), Mirela Rezende (UFG), Karine Marra (UFG) e Melissa de Almeida (UFG).
Fonte: Jota
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